segunda-feira, 31 de agosto de 2020

F for Friend

Soube noutro dia
que o rio célere
de que celebremente fala uma canção
não é mesmo um rio na lua

Mas quem
a não ser um rio que corresse na lua
aceitaria eu tratar
por huckleberry friend?

É como se ao ouvir
os vocábulos corretos
eu lesse num karaoke
sentidos mais insurretos

Basta um pequeno-almoço no Iémen
para que mesmo o que se vende na Tiffany’s
brilhe como uma fraude
Mesmo a poesia 

Asfixia coral

Um mundo que diria adeus à forma
quadrada da raiz
O vento
a parte do leão
que o desconstelaria em luna-parque
(em corte do seu bo-
bo)

Esmagado pela reacção

A harmonia em potência
(seis tons de transparência)
um mund’ a um grau de quebrar
Podia quebrar a mente
o gelo quebrava sempre
mas nunca quebrava o mundo

Destruído por revolução 

Unrat

A minha mãe nunca quis
que eu dissesse ao universo
aquilo que sempre em mim
nunca foi consensual
Ela, como toda a gente
mora na aldeia global

Mas, assim como se diz
que as nossas imensas glórias
nada são perante o céu
o mesmo argumento cósmico
pode fazer do bom-nome
um desassossego cómico

Assim eu sonho que um anjo
com uma virilidade
que é capaz de exterminar
padres, putas e bicheza
me troque os truques de estilo
por figuras de tristeza

Se assim fosse então diria
Ad astra para o bom-nome
Diria isto que disse
em termos e condições:
como toda a gente sabe
nunca digo palavrões 

#metoo

Então
já foi hoje fodido pelo facto
de ninguém aguentar o facto
de às vezes não se poder saber
se você fez ou não fez
(às vezes nem você sabe)?

Já foi hoje fodida pela prova
de que o mundo para o qual foi raptada
não está mais feito para o sentimento
que o convento no qual ao menos sonhava?

Já foi hoje fodido pelo caso
único, por acaso e por descarga
que o pôs fora da única casa
que fora toda a sua consciência?

Emprenhou e o putativo pai
passou no teste de paternidade
com a cábula de uma pomba quitada?

Sentiu-se mais preso por ter tido o menor
ou mais preso por ainda não o ter?

E a castidade, por Deus!, não lhe pareceu
sem qualquer ponta por onde se lhe pegasse?

Então
já foi hoje fodid@ pelo sexo? 

Vaivém relativo

Temos todos cá no âmago
um pêndulo de Foucault que
prova sem ambivalência
o desejo em rotação

Uns provam bem mais do que outros
e diz-se que alguns existem que
ao arrepio das leis do universo
só conhecem a translação 

Fahrenheit

Até chegar a este poema
tive direito a 16872 sóis
nem menos
nem mais

Mas terei cumprido o dever
de ir somando todas essas possibilidades
todas essas temperaturas
até chegar ao valor
que fará das erínias euménides

quando vierem queimar a forma com que pude ser? 

Carta a um jovem poeta

Gosto muito da palavra ninharia
Gosto de pensar que é um lar
para o guarda-rios e a cotovia
esses seres tão colossais
no seu desdém pelo intricado

Também gosto da palavra bagatela
com suas bagas que sabem tirar
o vermelho da boca da noite
Mas desta palavra gosto com discrição
pela outra tenho um fraquinho

Diz-se que os poetas são estúpidos
porque falam de flores e de pássaros
quando no mundo algo se passa
de exatamente intolerável

Mas os poetas apenas falam
daquilo que lhes coube em tragédia
a partir da palavra ninharia
a partir da palavra bagatela
 

Tema e variações

Todo o homem deve plantar uma árvore
ter um filho
e escrever um livro de amores contrariados

Mas na verdade o que importa
é que ele escolha a dedo
os imaginários onde decorrem esses contrários


Que seja, por exemplo, um mundo em que os corpos têm a consistência dos vitrais. Quando, sob um sol sem misericórdia, vêm desenlaçar os amantes, os corpos destes projetam no chão a transição de Rothko para Pollock.

Ou então um mundo em que os corpos, em vez de serem contextos de átomos, são-nos de bichos pequenos, e assim também pequena é a diferença entre fazer sexo ou amor: só se troca vagalumes por libelinhas, ou joaninhas por mariposas.

Ou ainda um mundo em que os corpos se comportam apenas como canções, e por isso, mesmo quando apartados, subsistem em loop nas bocas uns dos outros…

O que importa é escolher a ramo

Todo o homem deve ser uma árvore
genealógica
ou não 

Pensamentos, palavras, atos e omissões

 A boca dele um túmulo será
um epitáfio cada poema seu
Aqui jaz o que havia p’ra dizer
Morreu na mesma data em que nasceu

Para o mármore tudo ele dirá
para aqueles doirados monumentos
com que ao jugo da rima sobrevivem
os príncipes, os búzios ou os ventos

Para um buraco tudo ele dirá
a terra só se deixa penetrar
por quem com voz de burro tudo toca
para tudo poder silenciar

Quem ele ama ele nunca beijará
com lábio não fará censo ou censura
quem ele ama ele nunca há de entregar
aos centuriões do tempo e da usura

Fake news

Uma lua vermelha há de ser
uma coisa bonita
sobretudo quando ela vai ser

a mais bonita lua vermelha
do século todo
que há de correr

Mas não o há de ser assim
quando aparece como promoção
a não perder no relógio da vida

Há de ser lua
há de ser vermelha
e há de ser bonita

a coisa qualquer
que por acaso
sem se prever

se detenha
única em seu silêncio
entre mim e outro ser