terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Voz do rapaz que trabalha no café

“Este
já vai
p’ra os anjinhos!”
o meu avô
sem querer salvou-me.
Pois, quando não caídos,
em cadência ou em falência,
quando não perdidos, os anjos
só têm a incumbência de o sol
tomar nas próprias mãos, e de o erguer
de o erguer, de o erguer, de o içar até
que nada no universo se possa livrar
da condição de sexo.
Algum dia houve um dia que falhasse no nascer?
Sempre o arrebol destapa o recém-sol com humildade,
nada de fórceps, nada que não seja reunir,
grau após grau, o joio que aquece o deserto
co’ a joia que dá luz à beira do mar.
Diz-se que existem homens que não são
desesperados – não acredito,
simplesmente não encontraram
a pessoa certa ainda.
Há sol a sol, há ida
mas vinda não há:
pedra, papel
e tesoura,
escrita
vã…

Voz de Jean Servais

A vida é um poema em que os versos não estão
todos na mesma página. Que posso eu fazer
com este corpo só, só com um corpo? “Oh!,
já não dormimos hoje!”, quero dizer
que se afasta do sono todo o sonho
com uma timidez de coroa.
Lembrem-se de Dido mas não
do que lhe coube em destino.
Lembrem-se do meu reino
mas não do meu rosto
nem do meu busto
que é um arbusto
de puro
ar.
Não confundir nada com ninguém.
Não haver sequer rosa ao barulho.
Nada nem de justos nem de injustos.
Nada nem de luz nem de Beatriz.
Nada como um bumerangue
que regressa sempre a nada.
Nada às portas de nada.
Feito de nada.
Sem louvor.
Nada deixar escrito,
somente apalavrado.
Nada de semente.

Nada

Colhida na areia

Não é tanto tradição
mas o mito que a cidade
poderia em conjunto trautear
bem-me-quer de exultação
mal-me-quer de esgotamento
é da pétala que estou sempre a falar

já a outra é raridade
gume em guarda sobre os olhos
dir-se-ia ser a festa para os bravos
mas é brisa em tempo frio
tempestade sem estragos
nunca a sépala fará alguém sonhar

oh! como é agre a cultura
só se salva o escreve-dor
se o poema
                        do deserto
                                               faz arena


Beijo d'areia

O rapaz que ao domingo me serve
serve-me por par
tes

serve-me o olhar
e pergunta-me se o quero cheio
ou com cheirinho
serve-me a voz
e pergunta-me se a quero doce
ou para apreciador
serve-me a barba
e pergunta-me se a quero inteira
ou só metade
serve-me o porte
e pergunta-me se o quero muito
ou muitíssimo

o rapaz que ao domingo me serve
um café e meia torrada

é meu senhor

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Fundamentação do prazer

Partem os olhos
esses dragões de cor fogosa
e partem as maçãs do rosto
e as mãos
tão geométricas

belo como um tabuleiro de majongue
o homem está assim condenado
à solidão da boca


e do sexo

Less is more baroque

mahalito
estranha palavra…

Será o nome que se dá ao mexicano
a quem se tira o sonho americano?
será o nome por que uma menina trata
o seu tio deveras maluquito?
será um cocktail?
será uma doença que só arrebata gente rude
ou uma dança de que só se padece
no cinema de Bollywood?

enfim
se eu me declarar
e disser a palavra que falta dizer
(taj mahalito)
será claro tudo aquilo que
há vinte anos

ando a escrever

Aqui surreal

Quando sobre a gota outra gota caía
ouvia-se numa casa à cena contígua
uma velha canção dos The Platters
na qual toda a gente repete
smoke gets in your eyes

e ainda que
por razões de tempo e clareza
o que a seguir contamos
não se passe em vida terrena
a verdade é que
onde isso se possa passar

se há de ouvir a dita canção
boda após boda
até à relação


Outras paragens

A limpeza
a maquiagem
e sobretudo o peso –
– estava tudo assegurado
(pois se a idade não perdoa
o brio faz esquecer um bocado)

não lhes restava mais nada
a não ser vestirem-se de branco
e dizerem que estavam inocentes
tivessem os homens feito isto
ou tivessem os homens feito aquilo


estou a falar, é claro, das paisagens

sábado, 20 de janeiro de 2018

Des mots insensés

Mica aquela miúda ali. As grandes mamarocas, mesmo como tu gostas (ou lá o que é)! E o cabelo quitado, e os tacões de estilita, e aquele odor corporal que é a publicidade ideal aos imorredoiros versos do poeta: “Lulu? Oui, c’est moi!”… Já pensaste, meu morcão, na variedade de coisas que podes fazer com tal material?
Podem arquitetar em conjunto um plano p’ra matarem o presidente Trump. Podem fazer cinema: um filma, o outro deixa-se filmar, como não têm guito, todos os efeitos serão especiais. Podem até ser bobo e ser ama na corte absolutista de El-Rei Bebé. Ou podem morrer como um par enquanto tentam escalar as cataratas do Niagara.
O orgasmo é bom, mas os rapazes precisam é de imaginação:

            “Ne me quitte pas
             Ne me quitte pas
 Ne me quitte pas
 Ne me quitte pas”

I strut my stuff

No meu tempo, não se usava o artigo para fazer amor.
O artigo seguia todo para o cliente. Tinha muita saída, ai não que não tinha!... Era artigo de primeira necessidade, era o que é preciso. As encomendas? Mais que muitas: da Feira, da Mealhada, enfim, dos Mouros, até de Espanha! Muita vez cheguei eu próprio a ir fazer entregas a Vigo… Demorava-se horas naqueles cinco quilómetros antes da fronteira, mas vinha-se de lá com vento bom e barato. E dropes. Era outro tempo!
Quando o Sê Pinto, o patrão, não estava na loja… Olarilolé! Era então que fazíamos amor! Mas tínhamos de o fazer uns com os outros, porque o artigo, lá está, seguia todo para o cliente… Não havia estas modernices de se meter o “o” onde ele não é chamado…
Era outro tempo. As horas corriam mais devagar, respirava-se um ar mais puro, e toda a gente conhecia aquelas melodias de sempre:

            Let me go on like I
Blister in the sun”

You hear these funny voices

Como todas as crianças, todas, nasci cheio de dons e cheio de ouro (o berço só não os refletia por antipatia). Mas não nasci com o dom de uma voz dourada.
De um livro que escrevi aos vinte anos, a minha grande amiga Carla Maia salvou a imagem que havia para salvar: o soldadinho de chumbo dançando com a Marylin (acho que, no verso, havia um advérbio, mas isso não interessa nem ao menino Sigmund). Saravá, Carla Maia, senhora por quem tenho uma estima e uma admiração sem mácula, senhora que salvou a imagem que havia para salvar.
Não foram os vocalizos, as técnicas de respiração e colocação – não foi nada disso que me fez encontrar a voz. Foi precisamente a luta, corpo a corpo, alma a alma, para ganhar o direito a também ser senhor da palavra amigo e senhor da palavra amor.
Atingida assim a consciência, a voz encontra-se no ponto.
No ponto final.


“So you can stick your little pins in that voodoo doll
I'm very sorry, baby, doesn't look like me at all”