quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Pornografia para um radical

Aí estão,
na intimidade de Deus,
ou seja,
na intimidade dos primeiros instantes,
fulgurantes,
da história da inteligência:
não precisam de mexer uma palha
para encontrarem a incerteza das agulhas.

Aí estão,
com o descaramento da gargalhada
que liga e religa as criaturas
e com esse perfume sagrado que,
detonado em generosas cosmogonias,
a pouco e pouco se revelou amado.

Somos seus deslizes flexionais,
pois recebemos essa coisa de outro mundo
que é o, neste mundo, querermos ser felizes.

Aí estão,
                        as mulheres.


O exigente

Ele era alemão
e estava em mó de dinheiro,
mas não gostava da ausência de paixão
com que os suíços tratariam do assunto.

Recorreu então aos serviços
de uma modesta empresa italiana
(empresa cujo nome ocultaremos),
que talvez pudesse fazer
o assunto passar
por menos… impassível…

Foi-lhe entregue o cardápio do possível.
A experiência Cidade que nunca dorme,
por exemplo,
não lhe servia:
demasiadas frentes,
demasiadas batalhas para ele poder
ganhar a guerra de uma abertura
de ímpar em ímpar.

E ainda que lhe agradasse uma outra hipótese,
a de depositar sua imensa fortuna
no cofre do Banco de Arguim,
para que o assunto chegasse a bom porto
seria preciso garantir o que lá faltava,
o marfim de uma torre,
de um farol,
uma vista sobre a altura da aventurança.

Rejeitou ainda um castelo na Toscana,
a coluna de Simeão Estilita,
o canyon de Messiaen,
um balão voando por cima de cerejeiras em japão

Foi só quando aqui chegou
que se sentiu chegado à terra fatal.
Deram-lhe um quarto num solar
ali à beira do Jardim do Morro,
e todo um fim de tarde para mirar a eternidade;
essa, que,
ao contrário do que dizia o outro,
é uma tristeza de água doce.

Quando chegou a hora de mandar pela janela,
ele pensou que o pior
que lhe podia calhar

era voar.

Como um samurai

Como um shakuhachi,
ele obrigou a que parassem
e se calassem
para se ouvir o que,
em voz baixa e,
no limite do que parecia inaudito,
ele tinha para dizer.

Supuseram que ele falaria
do tempo tanto do universo,
de átomos e de estrelas e de mar,
de séculos e de árvores da vida
perenes no entretanto
da sua caducidade.

De deus,
da Liberdade…

Mas ele apenas disse
que todo o homem tem de enfrentar
a possibilidade concreta,
a inadjetivável possibilidade concreta
da pobreza.

Entre as dez e as onze

Incapaz de resistir ao primeiro copo
e incapaz também desse último gole que a primeira incapacidade justificaria quando tocada por desespero,

ele aí estava,
na esplanada de um café.

E estava o sol luminoso como um cacho,
e a brisa com um grãozinho de doçura,
e a linguagem ia e vinha como cão
em conversa de senhor,

e ele teve então a sobriedade de supor
que, perante tal ausência de tragédia,
poderia pousar a cabeça sobre a mesa
e, simplesmente,
morrer.

Mas isso não irá acontecer.

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Sou modesto.
Na minha situação,
já só procuro companheiro
para viagem a um país tropical,

para excesso de calor,
mas com prática de mar manso,
quente
e transparente,
para excesso de calor,
mas com prática de marisco,
mojito
e sorvete,
para excesso de calor,
mas com prática de preguiça
luau
e sofrimento.

Esse país chama-se:
casamento.

Não saber de que terra se é

Uma bicicleta,
um blue card
e, do olvido, as Metamorfoses:

eis tudo o que foi preciso
para eu cumprir o que a cidade
enig-
maticamente me ordenou:

que em ti me exilasse.

Foi empreitada difícil,
bem mais do que toda a poesia
me poderia ter feito prever.
A princípio,
tinha saudades das minhas ruas,
das gentes da minha carne e do meu osso,
do mirtilo que sempre me acenava
numa esquina entre o pulmão esquerdo
e a imaginação.
As memórias de mim,
uma vez de mim fora,
tornaram-se gorduras,
açúcares excessivos,
negrumes de tabaco,
pedras de rim.

Mas o tempo passa
(com Velocidade, Violência e Demência)


e as coisas mudam...

Em todo o caso,
o teu clima é melhor do que o meu,
nas tuas praias
pode ser-se feliz no instante do mergulho,

e o teu povo tem mais humor,
mais juventude
e talento para a dança
do que os espectros percutidos pelos plectros
da antiguidade da minha terra.

Hoje,
quando tenho um problema burocrático,
já só o trato no teu coração.
Quase só falo a tua língua
e, quando à minha regresso,
trago nela o dialeto de já a ela poder não
regressar.

Vivo numa cabana à beira-sangue
e ocupo os meus dias
(sempre maiores do que
os anos)
a tentar ser o champollion
de tudo isto que me aconteceu.

A outra pessoa na casa

Há, na vida, coisas muito bonitas:
melodias,
as covinhas de um rosto de rapaz,
a água de Tales de Mileto…
Mas nada se compara ao desconforto e à comoção
da outra pessoa na casa.

Sim,
eu gostaria de viver numa ilha do Pacífico,
entre nativos que já não existem,
e trocando as doenças do frio
pelas doenças do calor.
Mas a outra pessoa na casa prefere o Índico,
que também tem falta de nativos
e excesso de ilhas com defeito.
E assim,
porque não temos meios,
justificação
ou imaginação para partir,
os nosso sonhos ficam menos puros
e mais vizinhos.

Sim,
também na cama nos desentendemos.
Sob os vinte colchões eu quero a ervilha de quebrar,
e a outra pessoa na casa
prefere o grão-de-bico.
Mas o que havemos nós de fazer
senão foder
até o tempo começar a germinar?

Sim,
eu sempre quis ter morte doce
e a outra pessoa na casa
tem projetos para uma morte salgada.
Por isso,
na falta de acordo,
viveremos até que algo ou alguém
por nós decida o tempero do nosso fim.

Terceira ode portuense

(a Anthony, derrotado ao pagar uma cerveja a peso de ouro)


Acreditem ou não,
ele está no Peter’s Bar
a tomar uma cerveja poliglota,

e ouve uma modinha brasileira
e ouve o que diz uma vendedeira de bordados
a uma vendedeira de galos de Barcelos:
que o bi-horário,
afinal,
não lhe compensa

É assim a zona ribeirinha,
aquela a que, sem contemplações,
chamam de Ribeira,
mas ainda que o rio seja hoje
mais merda, merda mesmo,
do que poesia
(poesia mesmo não haverá…),
lá estão todos em torno do nada fazer,
pois assim manda a memória do mundo,
manda o postal,
o roteiro da agência,
e manda,
sejamos justos,
a curva sublime que o rio faz
quando se desvia como um tolo para a foz.


Logo,
nesses primeiros dias de sol, as camélias
ainda mais clássicas do que académicas,
a espuma da podridão outorgando-lhes
o desígnio do caráter,
e já o rio está cheio delas,
cada rapariga atirou para lá a sua
e os rapazes mergulham no perigo
para poderem devolver à namorada
aquela flor que não se confunde com nada
a não ser com um artefacto
de conto de fadas.

Mas é a festa mais célebre da cidade,
mais antiga do que a cidade e o seu capitalismo,
e ele abandona o lugar
como um grande viajante do sexo
que na ternura só soube fazer turismo.

Se este poema fosse um fóssil de música

a a’ a’’ a’’’
quantas sílabas métricas terá um grito?
quanto se pode ler da história da vida
no mineral do verbo que se infiltra
nas partes que, mais duras, decaem
nela mais devagar? se a planta
em desespero se torna
carnívora, não pode
a múzica ser imagem?
sou uma pessoa, sou poço
de contradições, de tradições,
de traições, de iões, autor e leitor
preso no elevador, içado de um sono
de morte pelo amor presente de um café.

Se este poema fosse um campo agrícola

Tanto é o profundo sob o rosto teu
Que el’ se tornou pequena superfície,

Mercearia onde vou vender crendice,
Batatas e maçãs, da terra, e do céu.

A despeito de tudo e da poesia,
Regressar à poesya, à produção,

Estrumar o teu cabelo, pôr na mão
Da chuva o teu futuro de ucharia,

Ceifar e semear dentes, espantar
As bruxas com um homem feito de alho

Que sabe que as tuas linhas do sorriso
E do olhar só se encontram no retalho.

O rosto é um vício, um sulco até à fé.
Fumemos um cigarro.

Se este poema fosse uma batalha

Tanta vez sobre a areia do sonetto

se voltou a dizer que ou ele ou ela
Foram fluxo e refluxo de beleza,

tanta vez outro assunto foi tratado
Em tal fôrma de amor em reflexão,
também eu vou lançar minha investida,
Quem sabe se entre merda, perda e oiro,

não acerto no porta-coração.
Urgente? sim,
como o deserto do Gobi precisa
Que himalaias seja nome de planície,

Como um oásis de rima nunca é
(por haver rima ou rima não a ver)

Uma ilha de açúcar no café.

Se este poema fosse uma jogada de bólingue

Só o oleiro justiça faz ao mundo

por suas próprias mãos:
é preciso meter

                              as mãos na massa
caligráfica, no p(r)elo,
fazer Ws como Ingres desenhava os cus,

manumitir o esdrúxulo animal IÍ
da palavra friíssima
(as mãos de Michelangeli e de Edward Scissorhands…),
ainda que não valha

a pena
dourar as solidões,
já que a rima depende da maneira
como a punheta diz o W.
Entornemos um café.

(paronímia)

As gaivotas estão a ocupar o Porto, cidade aberta. Já ocuparam aquele nicho de mercado que as pombas lentamente construíram no coração das velhinhas de jardim. Já ocuparam os ninhos que desde sempre os cucos armaram nos relógios de parede. E ocuparam também o posto das cegonhas que trazem meninos e meninas da vila de Paris. Os artistas do lugar estão, contudo, a lutar contra tal hegemonia. Já criaram a andouraine e a melrure, e estão agora a trabalhar na pardalette. Por baixo, a cidade, barroca nos ruídos e movimentos que se fundem e confundem,                               dança.


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.



(só me sai eu mesmo)

Sim, serei duque. Mas não com título de terra, antes duque de Schistocerca Gregaria, ou então nobre de tão-somente uma derrota: duque de alcácer-quibir. Sim, sou eu quem decide as estátuas da cidade, as imagens dos altares, os cartazes sobre os muros – por todo o lado estátuas do Camilo, dos dois Diogos, do outro Pedro )( Sim, fui eu que ordenei uma praga de verbos, destinada a mastigar o mundo inteiro e a, no pouco que restar, te reconhecer.


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.

(estrela de mel)

Muda de amor, sim. Mas não como quem muda de camisa, nem como esses restaurantes chineses que, todos, de repente, se tornaram japoneses. Muda de amor como a agulha de uma bússola raramente se inicia no seu ponto final. Muda de amor como a nave sucumbindo ante a camisa-de-forças marcianas, ou como a aurora,                       que após ter sido crismada pelo príncipe, se passou a chamar boreal. Muda de amor, sim.) Mas como quem faz, de um direito de esquerda, um gancho de boxeur. Muda de amor como aquele condutor que o GPS converte em, do mundo, um Teseu, ou como muda o sangue feminino à passagem dos meses, à passagem da uberdade e das traições da idade.


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.

(impressão)

O limoeiro do meu quintal é semipresidencial: no inverno ele é Belém, no verão, São Bento. No inverno ele acolhe a embaixada dos três reimosos magos: a chuva, o frio e o vento. No verão é porta aberta para o assunto que se segue: as estações suportáveis são muros entre cor de Píramo e cor de Tisbe – qual graffiti de amora qual quê? Os frutos fazem de gémeos melhor do que atrizes de telenovela, mas deixam-se abrir como se fossem cadernos de inédito artista, in-quarto, in-octavo (a esmo, nunca a ismo)…                                        Mandarei para o Tribunal Constitucional esta proposta de lei de taliãoº que diz que o limoeiro apenas dá possibilidades de limão.


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.

(apodyopsis, apodioxis)

Agora, já há músicos que escrevem para o vento. Mas, como acontece com qualquer instrumento, também nele se pode tocar Bach.)                      O vento é uma escrita, como todas as escritas transparente, que se mete nas ilusões qual piolho por costura. É só catá-lo: que nas árvores as folhasª fazem cheerleading às flores e aos frutos, que as nuvens são djs do disco solar, que o norte é uma preposição magnética (norte ponticello). O vento muda estados de coisas, de sítios, de emergências, coisas tão simples como uma letra que noutra se perde, e já o espírito do vento XVI é um adolescente que pergunta a outro: por que manténs a roupa absurda sobre o corpo? Proselitismo? Não, isto chama-se poeselitismo. Da janela do meu quarto, vejo um baloiço tão sozinho de fé e de infância que, quando baloiça, enferruja a brisa.


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.

(canção de tear)

Era uma vez um homem que queria fazer amor com uma mulher inacessível (p’ra sempre casta, com voto de frigidez, não-me-toques-que-me-destemperas). Mas o homem gostava tanto do lado solar da vida que, em vez de violar essa mulher, a seduziu. É a lenda que explica que, durante algumas décadas, eles se tivessem dedicado a escrever no corpo um do outro (tatuagens para quê?).                 Isso implicou uma certa perícia de se entre-colherem cogumelos e a ciência imensa de se fazerem ora rio, ora nuvem, ora lençol freático, no ciclo de juntos permanecerem. Aprenderam a gostar do seu par com a orientação concretíssima de quem prefere Moscovo ou São Petersburgo, vinho verde ou vinho maduro. Um dia ele partiu (morto até um dia, tão distante a tabacaria, um tapete voador). Longe da vista, longe do coração? Não estão a falar do sangue, pois não?


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.

(roubar esse fogo)

Era uma vez um rapaz e uma rapariga que se queriam encontrar no mesmo lugar. Para tal, marcaram encontro numa biblioteca e num cerejal. Desde essa estranha reunião, outros rapazes e outras raparigas passaram a fazer cerimónia dos seus corpos.) Por eles o tempo passou ambíguo, sofrendo cada um o que cada um queria sofrer: a fêmea contando cinquenta e nove grous na sua paisagem modificada, ele igualmente sensível à evidência pernalta mas mais modesto na celsitude dos seus eternos quinze anos.              Entre lágrimas que ora são bugigangas valiosas ora fios-do-mais-intenso-prumo e ternuras que, por serem perecíveis, também são biodegradáveis, eles aguentaram até ao verme do início se revelar verme do fim.


*O presente texto contém uma "iluminação" que não é possível reproduzir no âmbito deste blogue.

(alla breve)

Eu e a sobrinha correndo num campo florido. Florido de quê? Não sabemos. De tal modo corremos que as essências )girassóis, papoilas, hidrângeas( não conseguem conservar suas quintessências. Eu torno-me de novo criança. Ela permanece eterna. E é bem mais fácil para ela ser tanto do que para mim parecer tão pouco. Corremos neste poema ou noutro?

(places to visit before you die)

Cai nevoeiro sobre a cidade do porto: é um tira-olhos que põe olhos a quem quer continuar a ver. Os caçadores de imagens saem para a rua. Torres cortadas ao meio, o rio em paisagem onomatopaica, e diz-se que vão fechar o mercado do bolhão, é uma pena, era o único sítio naquele sítio onde se podia comprar maçãs de Adão. Sentado em cima de um cato, eu aguardo com linha e anzol. Parece-vos demasiado recato? Vereis os meus poemas-tordos, os meus poemas-lebres, os meus poemas-javalis.º

voz de anna magnani

(a=74)

no seu leito de reconversão das ânsias
a minha avó pediu
um prato de sardinhas
(tenho a andado a pensar nisso)

mas por que raio estou já a marcar
com tanta antecedência
a minha última ceia?
como se a morte desse pelo nome
ferran adrià
ou eu fosse uma dessas socialites
que a morte recebe sempre
à frente de toda a gente

carpa à moda do dia?
sopa de rabo de boi
(é a sugestão da carroça)?
ou devo antes escolher a companhia?

p'ra arreganhar a taxa de mortalidade
Dizem-me que é preciso
primeiro
morrer de riso                                   

[e eu acrescento que a morte
como a sardinha
não é boa se não for pequenina]

voz de antónio zambujo

(e=48)

hoje
a fisális e o louva-a-deus
tiveram de vir trinta vezes
ao palco                                                        
(como se diz que à fonteyn e ao nureyev
uma vez
também aconteceu)

não sei como há quem possa pensar
que o mundo é apenas matéria

não ter mais do que dez a celacanto
reprovar a marés vivas
e usar cábula só p'ra responder
ao perfume de alguém que nos chama

[entre o nariz de cyrano
e o do boneco de collodi
venha a esfinge
e escolha]

voz de marlene dietrich

(a/e=28)

"no âmbito do meu trabalho literário
era bem capaz de me especializar
em inscrições para cravos

escrever coisas em línguas já antigas
(e em carateres dourados)                                        
como
winona forever
ou
you have the right to remain sore"

[esta é a música que faz
o inseto polinizador]

voz de billie holiday

(e=41)

quero-te vestido de coisas
de coisinhas
de ti mesmo descoisificado
                                                      e descodificado

quero-te vestido de libelinhas
vestido de águas do mar de aral
ou de palavras de uma criança mentirosa
que foi achada em manifesta transgressão

mas não há tiro soado em belgais
nem primeiros dias de alto calor
que possam por ti mesmo decidir
da tua nudez
(ó senhor da manumissão)

[este
é o manifesto de um fetichista]

voz de tom waits

(a=50)

poetas há que vivem mais a evocar a vida
do que a viver uma vida
                                                           evocável

conduzir uma ambulância em cenário de guerra
quem isto escreve é um cobarde
que ainda por cima abomina a condução

e no entanto
nada é mais belo do que conduzir uma ambulância
(num cenário de guerra)

e ele há também a guerra das palavras
os ilógicos mimos retorquidos
entre símios sem idade p'ra condizer

[o poeta não sabe se é o condutor
se porventura o conduzido
quando escreve ti-no-nis]

voz de delphine seyrig

(e=45)

não há deus que acolha o teu gesto
num universo de materna compreensão
nem paraíso que te recompense
com rios de leite, luz e sangue azul
não há glória social que valha a pena
não há gratidão eterna
nem mesmo uma amizade
que resista a trinta dinheiros
(ou até a um pouco menos)

mesmo assim
és por vezes decente com o outro
e o outro decente contigo


[por vezes]

gam

o meu irmão tem um bebé com vários choros
o meu irmão tornou-se
her-me-neu-ta
um n no céu da boca?
um ó com boca oval?
acabou-se a doçura da vida do meu irmão
agora tem sal

há vários tipos de destino:
pirata
negreiro
de guerra
mercante
diz-se que o amor de pai
tem uma inquietação de moby dick

floema

eu
que podia escrever um mensageiro das estrelas
por cada ser que desejei sem atingir
hei de um dia
mudar-me para sempre em membracídeo
(e para sempre ser então
the next big thing)

todo aquele que tenta agarrar a existência
com pauzinhos
sabe quão difícil é
manter
a fleuma da peónia
sou um poeta japonês
na selva amazónia

dignitas

sempre quis ter uma casa
na aldeia
p’ra poder comer castanhas a olhar a cor das árvores
a minha prof de ciências
tinha uma
mas queria ter casa em istambul
p’ra poder tomar chá a olhar o bósforo

diz-se
(zzzzzzz)
que daqui a cem anos ninguém morre
lamentável:
porque é que eu não nasci ontem?
(houston, houston
we have a problem)

o tearjerker dos corais

talvez o homem que encontrou o melhor modo
de chorar o finamento dos corais
tenha sido usain bolt

a puta também não se sai mal
ao atingir por fim o orgasmo
da sua primeira ruga

sempre que florescem
as coraleiras ganham papel principal
em todas as cosmogonias

e já que falo de um foder escancarado
é como poeta sem vergonha na cara
(como al capone)

que ordeno a londres, a camberra e à rubra moscovo
que sejam o alvo da minha pena
                                                           inaugural


antiques roadshow

“foi-me dada por um ser
que deixou de ser crido”


a chuva é a letra miudinha
do contrato do mundo

é à socapa que ela cai
já no antigo estado civil

na sintaxe dos dois seres
prevê o pranto a forma

que pode o insólito isolado
soluçar como consolo

no seu solilóquio
sem deus amor ou vida

a não ser a aliteração
que desanuvia a palavra
                                        sol

crítica da razão desconhecida

sim
       o primeiro ataque foi precoce
poderoso
resultado não tanto do seu corpo
afinal demasiado diplomático
para insurgir os amargos da boca
mas do espectro de aromas:
nobreza vermelha, sémen silvestre
com notas de trabalho
e sugestões de morte e chocolate

mas logo a adstringência
levou ao final
prolongado e exuberante
do disparate

foi um voto, um talento, uma paixão
que abortou

conade(e)p

eu e tu:
o e é sempre copulativo

espero que o meu leitor
(especialmente se for argentino)
não pense que eu confundo
lirismo com tragédia

só me parece terrivelmente político
dizer que alguém só pode desaparecer
dentro do corpo da sua amante

no cinema
o Pedro já o disse
precisamente quando falava com ela

porque ele sabe
que para quem prefere o johnny depp
a via para o interior do amor
não é feita de chocolate
mas de uma merda quase literal

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Pessoas

Esmeralda é uma joia de pessoa.
Rosa é uma flor de pessoa.
Estrela é um brilho de pessoa
que só brilha noite sim dia não.

Mesmo a Rosa só é flor
durante uma estação.

E a joia da Esmeralda
(tão bela e preciosa),
é tão penoso arrancá-la
que mais vale deixá-la sonhada
no bater do coração.

Mistura

Todas as coisas, para além da gema, têm algo mais.

As pedras preciosas têm preço,
as manhãs não são ninguém sem o sol.
As portas tanto abrem como fecham
e as janelas não só veem, mas são Vistas.
A preguiça tem a seu cargo uma ambulância
(foi o que eu li no Google
quando a gripe o pôs às claras),
e a ursa constelada em grande coisa
tem no tempo do universo
a ameaça da extinção.
Uma ilha tem tudo o que de único,
de lua e maravilha
se passa sempre nela,
e não há quem se ponha assim chalupa
sem ficar também falua
ou um pouco caravela.

O que nasceu primeiro?

Partida

Deve ser tão difícil
meter as palavras num poema
como engarrafar um peidinho.

Se deitares
(pela calada)
um poema numa sala,

verás as pessoas não aceitarem mais nada
senão ar puro
alegria e distância.

Beleza

O pombo é correio,
mas o colibri é e-mail.
Repara
como a flor tem forma de arroba
no centro de endereços de brisa ou de vento
(forma de ar-roubo).

Repara
como a língua do colibri é tão comprida
que o néctar na linha do seu beijo
chega a ter quinze quilos
de distância e de desejo.

Crescer em vaivém

Era uma
vez um menino
que queria pôr no mar coisas da terra.
Já lá havia estrelas,
cavalos
anémonas,
que mais se haveria de arranjar?

O menino pensou então no camaleão.
Não para que ele mudasse de cor
de acordo com a falta de luz desse lugar,
mas para que fosse mudando simplesmente
a simpatia
do seu tom.

Como as marés se enchem e se vazam,
como as onda vêm e vão,
ele seria umas vezes cama,
outras vezes leão.

pentatlo

multiple choice (dardo, tiro)
o vento tem de escolher
entre fruto e folha
ou folha


ready-made (disco, natação)
quem é que eu sou
de onde é que eu venho
para onde vou


ateísmo (salto em comprimento, hipismo)
subir às árvores
para roubar
deus


carta a um suicida (luta, esgrima)
porque não simultâneas
não são alternativas
as estações


risco (corrida, corrida)
haicair
tropeçar no adn
da palavra

epopeia

arte
o inseto
assunto adequado
a uma praga de haikus


navegação
a aranha soletra
todo o seu mundo na teia
www


teoria
o mel
talvez o quadrado
do voo da abelha


anúncio
pequena larva procura
tempo para metamor-
fose ou algo mais


política
a revolução
carpintaria do novo
bicho-do-veludo

passeio dos tristes

um vero antonio pigafetta
eu navego no sidecar da poesia
mas pelo estreito do lápis
não há
            para os dois
                                   cabimento

a poesia morre
antes da volta completa
e eu registo o óbice e o óbito
como quem vela o mundo em movimento

dissertação

nenhum de nós é
vivo de mascarenhas
nem vivo de vasconcelos
muito menos
de rockefeller ou de la rochefoucauld
somos todos vivinhos da silva

durante a falsa partida
vestida de madressilva e madrepérola
a morte joga com cara de póquer
não revela se o tutti lhe é endémico
ou se a sorte também toca
ao seu académico adversário

nós (por cá)
vamos fazendo ensaios de naipe

polígrafo

nunca soube como engarrafar
uma embarcação
pelo estreito de um gargalo
nem como entregar-me ao correio
que faz menos deserta a ilha
e mais virgem a viagem

ainda que ébrio de mar ou de vinagre
não o conseguiria imaginar

orgulhoso
a mim mesmo envio uma mensagem
a falta de fé é o milagre do macho
se não consigo conceber
ao menos não concebo de deus
a centopeia de sombra
quando mudas de sentido
desfeita por um único raio de sol

um pouco mais ou menos de serenidade

primeiro
a criança aprende a apertar os cordões
é todo um saber complexo
que ao primeiro nó é ciência
mas ao segundo é já filosofia

todavia nós sabemos
(nós que já crescemos)
o quanto é fácil passar
do atacador a um ataque de dor
por isso

ao crescer
a criança tem de aprender a fazer
o nó na garganta
para caminhar firme entre acasos da vida
como se fosse divindade antiga

lenço de namorados

não sei se tenho ciência pra escreverte

ufa!logia ?
       giralogia?
ou talvez a espelhologia
onde te vez tintando
coa minha pena
as tuas pestanactites e pestanagmites
e num apenas fichar dolhos
me guardas dentro de ti
como se dentro de coisa grutesca

desejo da décima terceira passa

se eu pudesse ser uma máquina
gostaria de ser um hidroavião

p’ra caminhar sobre as águas
e ascender aos céus
sem precisar do combustível de um deus
a flor stradivarius
suas pétalas são fricções
de um caule

maria celeste

eu
que não tenho linhagem mas sim fuselagem
que só amo a alegria como neologia
e que em trinta e tal anos
de little boy passei para fat man

talvez não me arrependa
do muito pouco e pouco bombástico bem
que muito por acaso e por engano
no mundo propaguei

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

trabalhos oficinais

são carris por onde viajam gestos
são flechas de ternura
são as mãos

talvez herança de um Tio malabarista
de tal modo por elas passam tantos fazeres
por vezes baús às vezes deltas
mas o golpe é tanto e a asa tal
dir-se-ia que o fio do braço segura a-penas
o papel do papagaio

expressão

é como tirar um penso
se quiser arrancar
do seu rosto o sorriso
faça-o depressa e de uma vez Só

assim dói menos e não desfigura

assimetria (ginger e fred)

os olhos do amado
fazem-se sentir como se fossem
as patas de um manso gato
percorrem-nos almofadados
meticulosos
e frios
como convém a tudo aquilo
que connosco não se confunde

de repente
uma queda torna-se urgente
e os olhos caem
não enfáticos (nem dramáticos)
mas simples como berlindes
que não sabem fazer mais que cair
e são esses estalidos
de um sapateado cantochão
(esses tap tap              tap)
que sentimos como se fossem unhas
afiadas e colorIdas
a rasgaram-nos a solidão

T3 (ou o bálsamo)

    o tear do penteado, falso a-larme de uma brisa
           ou as hélices do olhar, mansas dróseras
         um beijo
      um queixo qual instância
  um quase rebanho de mãos, valsas em balsas
coisas assim sem importância
como arraiolos feitos de uvas
ou o gesto artesanal
de afagar em estrangeiro
       ainda o funil do umbigo, gargalispo das bermudas
         por Fim o sexo, o virgem choro
a imprecisão

V

“… comme une table emportée par l’inondation”
Benjamin Péret

as minhas pernas
e as tuas pernas
quando em carpintaria de sexo
são as pernas de uma mera mesa
apenas isso
uma mesa
coisa muito melo neto
muito madeira
certeza

não obstante
(quem ainda o diz?)
o número nosso
é o número cinco
os dedos de cada mão
e os dedos de cada pé
os orifícios do rosto
os lustros que damos
à guerra e ao coração

assim
se uma vaga inundação
ameaçar a mesa levar
até um porto inseguro
selvagem
(santo)
não há razão para medo nem espanto

seremos salvos por uma perna obstante
uma perna-não
que entre nós se atrapalhe
que nos atrase
que nos fixe
seremos salvos
pela quinta coluna
da nossa Velhice

v.i.p.

tem o seu Quê de misterioso
por graça há mesmo quem lhe chame
o monstro de Whatness

às vezes lá surge, furtivo
na imagem de um poema
mas é tudo apócrifo
tudo folclore literário

de facto, ele existe!
só que persiste em ludibriar
os paparazzi da palavra

argumento ontológico (e obsceno)

finalmente
uma oportunidade justa
de ab-usar o tão usado Tu
pois só tu me podes confirmar
se existes só intenso ou também oposto
se tens (por tanto)
realidade

repara
mesmo no pensamento com mais secura
(no mais grave)
medra sem medo uma cana
que pressupõe maior doçura
do que tudo quanto se possa pensar

mas o pensamento não é o colmo do ser
(isso é sonhar)

inconformado
racho (com dor) essa evidência
pois quando o açúcar é muito
há de algum (insolúvel)
ficar depositado no profundo da existência
e se assim não é
há que dizer então
que o pensamento pensa castrado

em fim
sendo eu tão rouco e Tu
(por tão pouco)
ab-surdo
daqui se entende que existes a-sim-a-sim

domingo, 3 de setembro de 2017

aleg(o)ria

de uma nuvem com forma de teta de vaca
sai uma tempestade de leite
(não houve sirene
porque o mugido se tornou nata)

fervem os reflexos nos lagos liriformes
mas o leite passa frio
como se fosse um livro
desescrito pelo tempo incólume

entornada na planura
qual quadro negro de uma sala de aula
a cidade está calma
nocturna

nas ruas
(futuras vias lácteas
há tão pouco tempo anárquicas)
somente um nascituro se insinua

mas eis que a cidade ganha asas
torna-se muito pequena
borboleta
fugindo não sã, mas salva

e a tempestade deixa nos caules
carícias de nácar
deixa risos sem tártaro
nos ramos mansos das árvores

as casas embebidas amolecem
ficam os recheios amnistiados
a Liberdade de delacroix
sente-se um logro afoga-se impotente

quem toma todo o leite é o leitor
(que traga açúcar que isto não é simples)


post-it

às vezes pode surgir
o desejo de fixar um pássaro
de fazer Pausa no seu voo
e de com ele marcar
algo de memorável numa página do céu

capela Sistina

estávamos nós
a atravessar uma ponte de espinhos
quando no planisfério do nevoeiro
nos ensinaram coisas sobre as rosas
(as invisíveis coloraturas de perfume)

e apesar da invisibilidade
havia um ateísmo de alta segurança
que dentro de nós confirmava
Sim
ali em cima havia rosas

“quando piove sul mare, ogni goccia è perduta”
Cesare Pavese

noite
um rebanho de formigas brancas labora
deixa palavras de limão sobre o papel
       (dos poemas amados chove cinza)
de repente
o vaivém das imagens contamina a pele
um doce vento começa a folhear
          ........................(a desfolhar) ondulações
e enquanto o cavalinho da madrugada
fino e delicado como o arroz
(ou outro alfabeto vegetal)
acusa a acidez do mundo
um sol de cigarras em fogo esbanja Beleza
o mar rasga e esvai-se em silêncio
............................--... (em cirílico)

A teia de aranha
Presa ao badalo do sino
São três menos três